quarta-feira, 29 de julho de 2009

EPISÓDIOS III

“…nunca pensei que as coisas fossem assim...”
Frase que bem olhada mais me faz pensar. Quando se parte para algo tem de se ter em consideração as várias hipóteses não descorando, bem pelo contrário, as que se nos apresentam como descabidas.
Quando tal acontece, há que repensar e tentar reparar até com o mesmo método, mas já adequado à situação.
Todos temos um pouco de derrotistas. Mas admiro muito, aqueles que conseguem provar, demonstrar uma maior força vencendo. É assim que vejo. Imaginemos. A praia.
Um pouco à frente está uma criança perfeitamente convencida ter escolhido o local ideal para a sua construção. Trabalha com desenvoltura na edificação do seu lindo e tão idealizado castelo, mas esqueceu um pormenor tão importante: a maré vai subir e de certeza a água vai lá chegar. Que pena. Decidi então, de mansinho e um pouco a medo, quebrar o encantamento e dizer-lhe o que pensava. Que das minhas passagens por aquela praia tinha notado que a água chegava ali e ao passar levava consigo tudo ou quase tudo...
Olhando-me com um misto de surpresa e compreensão, não me deixou terminar e disse apenas:
- Mas agora não está aqui!
Continuou no seu trabalho, mandando-me de vez em quando um olhar como que para dizer que apesar de tudo sabia que eu estava ali, mas não “sabia” sobre o seu campo.
Fiquei apenas a olhá-lo, afastando-me um pouco para não perturbar a concentração do menino e decidi não falar mais, continuando a pensar o que iria naquela cabeça.
Permaneci ali bem quieta. Sentei-me e apoiando o queixo nos joelhos, fiquei a olhar, tentando imaginar o aspecto arquitectónico daquele castelo. Era realmente enorme tendo em consideração toda a área demarcada para a sua construção. Como iria conseguir? Sozinho?
Não me restava senão aguardar, continuando com os meus pensamentos. Havia várias hipóteses:
1- Que por milagre a maré não subisse, o que iria contra tudo o que era hábito. Mas nunca se sabe e assim o menino teria todo o tempo para acabar;
2- Que chamasse outros meninos para o ajudarem a acabar antes da maré subir. Mas aí tínhamos vários problemas: será que os outros tinham a mesma visão? Será que corresponderiam ao que o menino desejava? Ou será que o achariam pretensioso na sua ambição talvez por não pensarem como ele?
3- Que não se importava que a maré subisse, mesmo derrubando o que já tinha feito. Faria apenas até dar e depois iria embora e não ligava mais àquele castelo, pensando construir outro, noutro dia, noutro local qualquer.
4- Que o menino choraria porque a água era má, tinha realmente destruído o seu castelo e que a culpa era minha porque tinha sido eu, a adulta, a lembrar à água que o fosse destruir.
5- Que perante a destruição do seu sonho, os seus sonhos vingariam porque apesar da água lhe ter destruído aquele castelo que se via, não conseguiria destruir a imagem desse mesmo castelo dentro da sua cabeça. Tinha pena que os outros meninos não o vissem mas, talvez o conseguisse reconstruir noutro sítio ou naquele mesmo, mas noutra altura.
Despertei das minhas conjecturas, faltando-me a quinta, com a água molhando-me os pés. Lá se foi o castelo. Olhei o menino e constatei que o estado em que estava não fazia parte das hipóteses que eu havia formulado. O menino estava triste, estava meio perdido, de braços caídos, olhando apenas para a água e para os restos do castelo.
Aproximei-me mas nem deu pela minha presença. Recuei. Não quis contrariar mais o menino. Fiquei preocupada com ele. Olhei-o e vi que me lançou um leve sorriso como que para me descansar. Entendi, talvez aquela revolta e desanimo se devessem ao facto de, apesar de saber o que se iria passar, o menino querer acreditar que daquela vez iria ser diferente.
À medida que me afastava martelava-me na cabeça a hipótese que mais se adaptaria à da reacção do menino.
5- Que perante a destruição do seu sonho, os seus sonhos vingariam porque apesar da água lhe ter destruído aquele castelo que se via, não conseguiria destruir a imagem desse mesmo castelo dentro da sua cabeça. Tinha pena que os outros meninos não o vissem mas, talvez o conseguisse reconstruir noutro sítio ou naquele mesmo, mas noutra altura.
Não resisti à tentação de ver o que iria fazer e voltei àquela praia no dia seguinte. Fiquei contente, porque nas minhas hipóteses nem tudo tinha falhado, lá estava o menino novamente. Desta vez pareceu-me, apesar de o ver na mesma direcção, que estava um pouco mais afastado da água.
A areia era um pouco mais seca dificultando a tarefa ao menino que a ultrapassava molhando a areia com a água, que ia buscar num vaivém constante. Aproximei-me. Olhou-me e vi aquela tristeza lá no fundo, mas já ultrapassada por um certo brilho no olhar e com ar sério e sábio disse-me:
- Sabes...não faz mal, vou voltar a fazer de novo e desta vez ainda é mais bonito, pensei que foi melhor assim - e continuou sempre a falar exemplificando-me o que estava a dizer.
Reflecti. Tinha sido válida a invasão da água. O menino recomeçou, ponderando, ainda com mais coragem, ideias renovadas e um pouco mais cuidadoso. Voltei sempre, tentando ganhar aos poucos a confiança do menino, esforçando-me para que me deixasse ser sua amiga.
(in: nas asas do vento encontrei orixá - Dina Ventura)

EPISÓDIOS II

Algo se estava a passar.
Era como se uma força centrípeta insistisse em empurrar-me para um ponto que se chamava passado. Não oferecia muita resistência, embora não percebesse qual o objectivo.
Algo se passou.
Dei por mim, num lugar que não me era totalmente estranho, mas que naquele momento me pareceu um pouco distante e onde me sentia deslocada. Não conseguia reagir.
Tudo se processava fora do meu alcance, do meu entendimento, surgindo-me apenas uma explicação lógica para tudo aquilo: estava possivelmente numa das alturas em que confundia real e imaginário.
Mas nenhuma das explicações me parecia correcta. Eliminada uma a uma, cheguei à conclusão que apenas estava a fazer o balanço de trinta e cinco anos, num local que não sabia definir de presente, passado ou futuro.
Em catadupa, perseguindo-se, atropelando-se, as questões surgiam dificultando ainda mais aquela árdua tarefa de retrocesso. Porquê nesta altura? Por onde começar?
Era como um puzzle de milhares de peças, completamente misturadas, que ansiavam que alguém, cheio de coragem e paciência as colocasse no lugar certo.
Que difícil tarefa mesmo para um profissional. As referências confundiam-se esbatidas no tempo esquecidas, pensando até serem obsoletas. Tinha de começar por algo. Tentei por ponto final na minha confusão e esquecer, por momentos, tudo aquilo.
Decidi descansar, deixar que as coisas acontecessem ao acaso.
Estava em casa há já algum tempo, tentando que alguma coisa diferente acontecesse, mas vendo que tudo se mantinha na mesma, resolvi-me pelo movimento exterior. Saí.
O meu cansaço enfastiou-se ainda mais. Tudo se mantinha igual. Nada, nem uma leve brisa de novidade! Tento recriar, através de escrita enrolada, o enrolo em que me encontrava. É desgastante sentir um não se sabe o quê, por mais que se tente explicar.
Invejo os momentos de um filme em que me sinto lá. É um espaço de tempo curto mas chego a pensar ou melhor, a sentir que é possível estar-se. Mas tudo não passa de ficção. A realidade do nosso verdadeiro filme é mais difícil, mas não impossível!
Porque não utilizar a imaginação, para atingir de forma mais real o filme que nos pertence e onde nos propomos desempenhar da melhor forma possível o nosso papel. Cabe-nos algum de certeza e por menor que seja, nunca será o de espectadores passivos do nosso próprio desempenho. Meros espectadores para melhor apreciarmos, até devemos ser, mas de uma forma activa. Passaríamos à fase do pensar sobre a nossa representação, o nosso desempenho. Aí teríamos de conseguir o desdobramento, o que não sendo fácil, seria no entanto a mostra de toda uma vida cheia de Vida e de papéis desempenhados de Verdade.
(in nas asas do vento encontrei orixá - Dina Ventura)